A luta da juventude negra gera oportunidades e impacta territórios periféricos
- Iniciativa PIPA
- 19 de jun.
- 6 min de leitura
Carla Ninos
Iniciativa PIPA
Há muito tempo ouvimos discursos que proferem a máxima: a juventude é o futuro! A minha flexão sempre é: de qual juventude se fala? E para quem é esse futuro?
Os jovens brasileiros, negros e periféricos, enfrentam barreiras estruturais em diversos aspectos de suas vidas, que os inviabilizam e/ou os tornam alvos permanentes das políticas opressivas do Estado, seja pelo encarceramento ou pela arma de fogo da polícia.
No entanto, dentro deste contexto e diante de todas as dificuldades, a juventude negra resiste, se reinventa e reivindica espaços para construir possibilidades de mudanças e oportunidades para as suas comunidades.
As periferias têm as respostas e sabem o que fazer e como fazer para provocar impacto positivo nos seus territórios. E dados mostram que a dinâmica da mudança está nas mãos das mulheres negras e jovens das periferias.
Segundo a pesquisa “Periferias e Filantropia – As barreiras de acesso aos recursos no Brasil”, lançada pela Iniciativa PIPA (2022), a maior parte das pessoas que estão compondo organizações de periferias no país, hoje, são jovens negras (74%) e, majoritariamente, mulheres (68%). A pesquisa foi realizada nas cinco regiões do país, com 607 organizações periféricas, urbanas e rurais.
Ainda segundo a pesquisa, 91% das organizações entrevistadas acreditam que as iniciativas desenvolvidas alavancam a economia local, demonstrando assim a alta conectividade entre o social e o setor econômico.
Comunicação para empoderamento da mulher negra
A I'sis Almeida (28 anos) e a Lavínia Oliveira (25 anos), fundadoras do Portal Black Mídia, em Salvador (BA), criaram inicialmente o Portal Black Fem, página no Facebook fruto do movimento de mulheres negras, organizado em torno da primeira Marcha do Empoderamento do Crespo, realizada em 2014. O objetivo era trazer para o meio digital temáticas que tratassem sobre a autoestima e autonomia de adolescentes negras.

Em 2018, a partir de uma campanha de financiamento coletivo, a página virou site, passando a contar com 13 colaboradoras voluntárias, entre meninas e mulheres negras. Elas escreviam sobre temas voltados para a negritude, principalmente, para a mulher negra, como direito ao voto, feminismo, mulherismo africana, solidão da mulher negra, autoestima intelectual e física, autonomia, filosofia e diversos outros assuntos. O site alcançou uma grande audiência, sendo referência no setor e, ainda, era um lugar para muitas meninas realizarem estágios da faculdade. Mas, por problemas no desenvolvimento, o site foi tirado do ar em 2020.
Em 2023, voltaram a ativa após participarem do programa de aceleração de startups de jornalismo do Google. Com o recurso do programa, conseguiram formalizar o portal e montar uma redação quase “tradicional”, contando com quatro colaboradores de diferentes áreas necessárias para produção de jornalismo multimídia. Em 2024, se destacaram ao figurar entre as 80 startups finalistas do programa Startups Nordeste Bahia, do Sebrae Bahia em parceria com a Fapesb.

É importante observar na caminhada da I’sis e da Lavínia com o Black Mídia, que todo o corre se inicia a partir da observação de uma necessidade local. Há um empenho pessoal para construir oportunidades que visem mudar determinada realidade em seus territórios. A I’sis analisa que, para além da questão dos conteúdos produzidos, há um impacto no território ao se formar uma equipe de mulheres jovens e negras, a maioria da geração Z, que mostram que é possível fazer jornalismo de dentro das comunidades periféricas para fora. São jovens comunicando com e para pessoas jovens, construindo uma política editorial que foca em narrativas inspiradoras e que geram incentivo à mudança.
“Eu sou uma pessoa oriunda da Cidade Baixa, uma área litorânea da capital. Essa região concentra bairros majoritariamente periféricos e rodeados pela Baía de Todos os Santos. A maior parte das oportunidades estão concentradas no centro da cidade. Acho que a gente muda realidades quando consegue ser uma alternativa a um mercado de comunicação estritamente fechado, onde o crescimento profissional está quase diretamente ligado a quem indica, a ser herdeiro. Na contramão, nós criamos nosso portal e criamos oportunidades para pessoas, como eu mesma, que durante a graduação tive muita dificuldade em conseguir estágio, por exemplo”, comenta I’sis Almeida.
Sonhando o futuro
Olhando novamente para os dados da pesquisa “Periferias e Filantropia”, vemos que 89% das gestoras de organizações de periferias que responderam a pesquisa têm outro emprego para conseguir compor renda ou até mesmo para destinar para a organização/iniciativa/projeto. Ou seja, são jovens que estão, no mínimo, em jornada dupla. Além disso, 92% das organizações de periferias não possuem uma pessoa contratada por CLT.
Diante dessa realidade, é urgente que a filantropia mude a forma de doar, olhando para fortalecimento institucional dessas organizações com prioridade. E mais, é preciso pensar na desburocratização do acesso a recursos, também a partir da perspectiva da confiança pois, em meio aos desafios sociais e econômicos, as organizações periféricas têm demonstrado ser terreno fértil para mudar realidades duras e criar oportunidades nas suas comunidades, principalmente para a juventude negra.

É o caso do Instituto Cultural Casarão das Artes, fundado em 2013, no bairro Pedra 90, em Cuiabá (MT), um dos bairros mais populosos da capital. É uma região afastada do centro e atualmente é o lugar com o maior índice de violência doméstica e gravidez na adolescência na capital mato-grossense.
Camila Rodrigues (31 anos) está à frente do Casarão desde 2019, e conta que o lugar tem como público-alvo prioritário crianças, adolescentes, jovens e famílias da periferia, especialmente em situação de vulnerabilidade social. O trabalho é voltado para democratizar o acesso à arte e à cultura com foco na formação artística, valorização da cultura local (como o Siriri) e o fortalecimento de vínculos comunitários.
O Casarão oferece oficinas gratuitas de arte e cultura, como percussão, dança, teatro, canto e audiovisual, além de acompanhamento psicológico e bolsas de incentivo. O foco é a formação cidadã e o fortalecimento da autoestima de crianças, jovens e famílias da comunidade, oferecendo oportunidades e uma nova visão de futuro, mas com os pés fincados na realidade do território.

Todo esse trabalho é viabilizado pelo acesso a financiamentos públicos e privados, doações e etc. Hoje, o Casarão conta com o apoio do Fundo Social do Sicredi, da Fundação André e Lucia Maggi, da Fundação Abrinq, além de editais culturais via Ministério e secretarias de cultura e editais privados. E estão em fase de captação através da Lei Rouanet.
“Acho que chegamos onde estamos porque mantemos uma continuidade com oficinas regulares, com professores da comunidade, criando vínculos duradouros e dando perspectiva de futuro”, analisa Camila.
Desafios estruturais
A Camila, juntamente com a gestão do Casarão, são um case de sucesso, dentro da realidade das organizações de periferias, pois conseguiram profissionalizar a gestão e hoje contam com capacidade de captar recursos e de apontar bem os indicadores e construir relatórios consistentes. A partir desta organização, a gestão consegue acessar novos financiadores e prestar contas com responsabilidade.
No entanto, observando os dados da pesquisa "Periferias e Filantropia", tem-se que 52% das organizações afirmaram não possuir sequer CNPJ e 95% acreditam que a formalização impacta na capacidade de captar recursos financeiros. Outro dado importante é que 31% dessas organizações vivem com menos de 5 mil reais por ano.
Isso é um alerta, que exige dos doadores abertura para outras práticas que visem apoiar de fato as organizações de base territorial do Brasil. Nesta perspectiva, a Iniciativa PIPA elaborou o Guia das Periferias para Doadores, que visa apoiar quem doa, para que repensem os seus processos de doação e façam com que o dinheiro chegue, cada vez mais, em quem faz a realidade acontecer nas periferias.
“É preciso inverter a lógica. Quando muito se fala do que as organizações periféricas precisam fazer para terem financiamento, a PIPA pontua o que as organizações doadoras podem fazer para que seu recurso seja repassado de forma mais equitativa. Assim, a PIPA destaca três eixos, que podem começar a contribuir para que os recursos sejam mais facilmente distribuídos, são eles: recursos destinados ao fortalecimento institucional das organizações periféricas; a transparência dos portfólios dos doadores e a pluralidade nas equipes e conselhos”, afirma Gelson Henrique, diretor executivo da Iniciativa PIPA.
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