Texto da Ester Pinheiro, publicado originalmente na revista Alliance Magazine.
A descolonização não é apenas para o Norte Global. Alguns pesquisadores no Brasil estão afirmando que não precisamos descolonizar a filantropia nacionalmente, que a descolonização é algo importado ou válido apenas para nações do Norte. Mas eles estão esquecendo de um ponto — vivemos em uma sociedade permeada pela existência de pactos, práticas e visões coloniais. Portanto, precisamos entender que o campo da filantropia como atividade humana e social é inseparável da dinâmica que permeia a sociedade como um todo.
Como uma nação colonizada, nós replicamos a lógica colonizadora na vida cotidiana, assim como na filantropia. Nas relações de doação, há a pretensão de uma relação hierárquica entre o doador e o receptor (visto como o "outro"). Dessa estrutura de cima para baixo vem uma imposição do que o "outro" precisa, o que é melhor para ele e até mesmo as respostas sobre como transformar sua realidade.
Há uma mentalidade colonial em andamento na filantropia brasileira, de doadores que não reconhecem o conhecimento de comunidades locais em estado de vulnerabilidade. Eles não são reconhecidos como produtores e atores do conhecimento, capazes de produzir estratégias para melhorar e avançar suas comunidades. Essa visão exclui sua agência e traz soluções ineficazes, pois há uma falta de compreensão de suas reais necessidades.
Parece que o colonialismo foi superado, mas o que está implícito ecoa vozes coloniais antigas e distantes que vieram para trazer 'cultura', 'conhecimento' e 'tecnologias' para pessoas 'sem elas'. Estamos mais conscientes do impacto da subjugação colonial de culturas, mas a busca por soluções ainda está sob influência colonial. Temos que sustentar o desconforto de não sermos tão descolonizados quanto pensávamos que éramos.
Em um país tão desigual como o Brasil, o acúmulo de riqueza é produto de injustiças e desigualdades históricas contra principalmente negros e indígenas em séculos de escravidão. Não se trata de demonizar quem tem mais recursos hoje, mas não importa o quão longe vamos na discussão sobre inclusão racial e de gênero na filantropia, o debate sempre acaba sendo centrado em homens brancos do sudeste do Brasil. Então, enquanto houver racismo estrutural, há necessidade de descolonizar.
Como funciona a filantropia no Brasil?
No Brasil, a filantropia é desenvolvida e centralizada geograficamente na região sudeste, principalmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, e a maioria dos doadores são homens brancos. As doações nacionais são baseadas no que esse grupo específico de pessoas pensa ser a solução certa para um determinado problema, com pouca consideração às realidades locais, cultura ou normas sociais.
Não reconhecer que há práticas coloniais na sociedade brasileira e que isso reflete diretamente na filantropia é uma forma de dar as costas às minorias políticas, às relações de subordinação e opressão. Exclui a presença de diferentes grupos que lutam por direitos e querem ter espaço na filantropia brasileira, principalmente no acesso a recursos flexíveis, alinhados às suas pautas e necessidades.
“Para dizer que a descolonização não é necessária para a filantropia no Sul, primeiro precisamos refletir: quais relações de poder estão presentes na filantropia nacional?”
Afirmar que a filantropia brasileira é permeada por visões e práticas coloniais é desconfortável. É como colocar o dedo na ferida, sacudir e questionar as ações de atores tradicionais que têm acesso à riqueza e, com isso, à tomada de decisões.
Montar a discussão sobre descolonização no Sul força os que estão no poder a saírem da sua zona de conforto, do seu lugar de protagonistas. Abrir mão de privilégios significa abrir mão do poder e do acesso exclusivo à riqueza e, certamente, esse é o grande desafio que enfrentamos como sociedade no Brasil e não apenas no campo da filantropia.
Filantropos no sul deveriam estar fazendo reparações por perpetuar sistemas coloniais. Comunidades mais afetadas por desigualdades sociais no Brasil, como quilombolas, ribeirinhos, negros e indígenas, principalmente no norte e nordeste do país, deveriam decidir como melhor representar e governar os esforços por meio de uma abordagem baseada na comunidade. Em vez de doadores do sudeste presumirem que algo precisa ser levado a uma comunidade local para lidar com seus desafios, a questão deveria ser como uma nova mentalidade pode ser criada que traga à tona a riqueza, o talento e os recursos já existentes em sua comunidade em busca de mudança?
Filantropia no Brasil requer transformação radical
Há uma necessidade de reestruturar o poder nas relações filantrópicas no Sul. Projetos no Brasil que visam apoiar comunidades indígenas devem deixá-las liderar o caminho. Eles devem declarar os desafios mais urgentes, selecionando assim o tipo de parceria que melhor atende às suas necessidades autoidentificadas. As comunidades devem liderar o caminho em que a filantropia é feita e não o oposto.
O conhecimento local deve alavancar mudanças locais sem impor soluções rápidas de cima para baixo, mas sim fortalecer as vozes e reconhecer o poder das comunidades para encontrar suas próprias maneiras de enfrentar os problemas.
A filantropia no Brasil requer transformação radical, baseada em novas alianças entre diferentes territórios, regiões e diversos atores sociais nacionalmente, o que não deixa espaço para um retorno ao estado anterior de conformidade com o poder colonial dominante e simbólico. A filantropia no Brasil deve promover a justiça social e superar o racismo e o sexismo.
Para ajudar a sociedade brasileira como um todo, precisamos descolonizar a filantropia. Comunidades locais e grupos vulneráveis que recebem recursos devem ser os que decidem o que fazer com as doações. Para dizer que a descolonização não é necessária para a filantropia no Sul, primeiro precisamos refletir: quais relações de poder estão presentes na filantropia nacional? Ainda existe um 'salvador' e 'solucionador' de problemas sociais? Qual é a raça e o gênero da maioria dos filantropos? Existe uma abordagem baseada na comunidade? Por enquanto, sabemos que há muito trabalho a ser feito.
Ester Pinheiro é uma jornalista multimídia brasileira que cobre principalmente questões de justiça social.
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