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Foto do escritorPipa Comunicação

Manifesto à Filantropia Brasileira pela Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha


Nildamara Torres - coordenadora de pesquisa|PIPA 

Letícia Mendes - assistente de pesquisa|PIPA


As mulheres negras tiveram, ao longo da História, o poder de construir e transformar o mundo. O que não é uma tarefa fácil, pois sabemos que este mundo não esteve ou está a favor de nós. É como nadar contra a maré: através de várias braçadas avançamos lentamente, muita das vezes, a maré é mais forte e nos lança novamente para trás e, mesmo exaustas, continuamos a nadar, mesmo sabendo que a terra à vista continua longe de nós. Essa metáfora simboliza a luta diária das mulheres  negras, na busca pela (in)alcançável equidade, justiça e igualdade. 


Neste dia 25 de julho, em celebração ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, nos manifestamos sobre o poder das nossas vozes. Vozes que ecoam das periferias e que clamam, há muitos séculos, pelo avanço e pela transformação da sociedade. Uma dessas vozes foi a da Rainha Tereza de Benguela.

Ao liderar o Quilombo do Quaríterê, Tereza lutou pela sobrevivência da sua comunidade contra o regime escravocrata, por volta de 1750. Como governante, administrou sua comunidade, mantendo todos seguros e alimentados, fazendo trocas econômicas e criando regras em favor do seu povo. 


Dá para imaginar uma mulher negra nesta posição? Principalmente, sabendo que até os dias atuais, nossa sociedade democrática jamais elegeu uma mulher negra para governar. Nunca tamanho poder foi cedido a nós e é pela representação emblemática desse poder, que a Rainha Tereza é o símbolo de luta e resistência que marca este dia, também conhecido e reconhecido pela Lei nº 12.987, como Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra


Embora a maré seja forte, ou melhor, embora o racismo estrutural, o eurocentrismo e o sexismo sejam implacáveis, figuras como Tereza de Benguela e a celebração da sua vida, luta e resistência nos lembram que somos nós, mulheres negras, aquelas que  lideram e movimentam as engrenagens da mudança social no nosso país. Mais do que isso, essa data nos lembra que os espaços de poder nos cabem e nos pertencem. É sobre isso que devemos focar nossa atenção e, à luz dessa representatividade, usamos este espaço e este dia, para falar sobre as mulheres negras na filantropia brasileira. 


Elas formam a base da mudança, mas não chegam ao topo – a condição da mulher negra na filantropia brasileira

É bem sabido que as mulheres negras constituem a base da pirâmide social. Isso porque as iniquidades e desigualdades que as atravessam têm origem, tanto no racismo estrutural, quanto no patriarcado. Por não ser branca e nem homem, a mulher negra se torna “o outro do outro” (Kilomba, 2019), marcada de forma inigualável pela dupla invisibilidade. No imaginário social, sua condição de não sujeito a torna objetificável e abjeta, sendo assim representada pela cultura, mercado de trabalho, mídias sociais e, de modo mais sutil e marcante, nas relações sociais onde as relações de poder são estabelecidas.


Ousamos dizer que este fato, é perpetuado em diversos segmentos da estrutura social e no campo da filantropia não é diferente. Na ponta, são as mulheres negras quem lideram as iniciativas na defesa de causas importantes e plurais. Tanto que, de acordo com os dados da pesquisa Periferias e Filantropia (2022) da iniciativa PIPA, a maioria das organizações e projetos de base são geridos por mulheres negras, totalizando 39,9%. 


Sendo assim, vemos que o movimento de mudança social, gerado na base da sociedade brasileira, é orquestrado por um grupo que possui cor e gênero específicos. São as mulheres negras que trabalham para tocar e transformar o mundo a sua volta de modos que, negros, mulheres, LGBTQIAPN+, crianças e idosos, minorias políticas, de modo geral, tenham um futuro com mais igualdade. 


Apesar da tarefa de tamanha importância, essas mesmas iniciativas que nascem das periferias brasileiras não são estimuladas, financiadas e reconhecidas da forma como deveriam, por aqueles que têm o poder de fazê-lo. Mais alguns dados reforçam tal interpretação, já que segundo a mesma pesquisa, do total de mulheres negras que gerenciam organizações e projetos no Brasil: 


  • 97,1% encontraram dificuldades para acessar financiamento para seus projetos; 

  • 87,7% da maioria atuavam como voluntária e mantinham outros trabalhos ou frentes; 

  • 44,7% receberam menos de 5 mil reais entre 2020 e 2022 para gerir sua organização; 

  • 56,1% não possuíam CNPJ ou não possuíam CNPJ ativo. 


A luz destes dados, podemos refletir que o cenário das mulheres negras é delineado pela dupla jornada de trabalho, informalização e falta de acesso aos recursos que circulam no terceiro setor. No Guia das Periferias para Doadores (2024), lançado pela PIPA, um dos eixos de destaque esteve voltado ao debate do fortalecimento institucional das organizações periféricas.) 


A partir da pesquisa Periferias e Filantropia (2022), ficamos cientes de que, as organizações que necessitam ser fortalecidas são geridas, principalmente, por pessoas mulheres negras, que enfrentam os maiores desafios de acesso aos recursos. Quando pensamos nisso, entendemos que falar de mulheres negras na filantropia é falar sobre democratização de recursos e de filantropia estratégica! É falar também sobre fortalecimento institucional e o seu poder de transformação, que pode (e deve) ser usado como estratégia contra a precarização do trabalho e para reduzir as desigualdades.  


Afinal, como garantir que os recursos cheguem até quem mais precisa, se não enxergarmos a realidade de precarização que as mulheres negras enfrentam na filantropia? Como fazer este debate, sem o devido recorte racial e de gênero? E como garantir que mulheres negras acessem os recursos, de modo que seu trabalho e instituição sejam adequadamente remunerados e valorizados? Os dados não deixam dúvidas, as mulheres negras representam, parcela significativa das periferias que não acessam os recursos, ou mesmo são estimuladas a fazê-lo. 


Sua condição na base, enquanto grupo majoritário que lidera e coordena as iniciativas que transformam este país, além de precária, também se perpetua no topo. Chamamos atenção que, outro desafio a ser enfrentado pelo setor da filantropia brasileira, também evidenciada no Guia das Periferias para Doadores (2024) e, mais um vez destacado aqui, diz respeito à ausência de pluralidade nas posições de influência e espaços de tomada de decisão.

 

Este é, sem dúvida, um desafio que reflete o olhar desatento diante da precariedade enfrentada por mulheres negras periféricas em suas organizações, como destacado. Afinal, quem são as mulheres negras do topo pensando nas mulheres negras da base? Neste quesito, a desigualdade racial e de gênero se manifestam de forma contundente. 


Segundo os dados do Censo GIFE, em 2022 havia apenas 26% de pessoas negras e indígenas ocupando os conselhos deliberativos das organizações doadoras e, com relação à paridade de gênero, 68% dos conselhos eram compostos por uma maioria masculina. Se cruzássemos os dados de raça e gênero, qual seria a representação de mulheres negras na ocupação de cargos de influência e de tomada de decisão na filantropia? 


Ainda, outro dado importante desta mesma pesquisa apontou que 81% dos institutos e fundações não possuem políticas para promover a mudança no perfil desses conselhos.   

A respeito da condição da mulher negra no campo da filantropia, tais informações refletem sua própria condição na nossa sociedade: elas formam a base, mas não chegam ao topo! Com isso em mente, nos questionamos mais uma vez: como podemos pensar em democratização de recursos, redução de desigualdades e filantropia estratégica, se o perfil das mulheres que atuam nas periferias não está representado no topo? 

Parafraseando Lélia Gonzáles, “nós mulheres e não-brancas, fomos ‘faladas’, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza. Ao impormos um lugar inferior no interior da sua hierarquia (apoiadas nas nossas condições biológicas de sexo e raça), suprime nossa humanidade, justamente, porque nos nega o direito de ser sujeitos não só do nosso próprio discurso, senão da nossa própria história”. 

Pensando nisso, como podemos esperar que as mulheres negras sejam devidamente representadas e reconhecidas no setor de doações no Brasil, sejam como líderes de base ou nos espaços de tomada de decisão, se não pluralizarmos os espaços de influência e cedermos o palco para que suas vozes sejam, de fato, ouvidas? 


Para superar essas desigualdades e promover a inclusão das mulheres negras de forma eficiente, é fundamental que as organizações do setor adotem práticas mais inclusivas, promovam a pluralidade em suas equipes e lideranças, promovam ações para reduzir a precarização do trabalho executado por elas em suas organizações, direcionem recursos e ampliem as oportunidades para projetos e iniciativas de e para mulheres negras, bem como para suas comunidades.


Este manifesto tem como propósito, retratar a condição da mulher negra na filantropia e, nesse sentido, comunicar ao setor quais desafios precisamos enfrentar. É necessário criar oportunidades de liderança e capacitação para as mulheres negras, reconhecer e remunerar seu trabalho e suas contribuições que, afinal, mudam nossa sociedade e transformam o mundo. Isso só será possível, se ampliarmos suas perspectivas e escutarmos suas vozes. 


Referências 

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2020.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2020.

Iniciativa PIPA, Periferias e Filantropia – As barreiras de acesso aos recursos no Brasil. (2022). Disponível em: https://www.periferiasefilantropia.org/ 

Iniciativa PIPA, Guia das periferias para doadores. (2024). Disponível em: https://www.iniciativapipa.org/o-que-fazemos/guiadasperiferias 

Grupo de Institutos Fundações e Empresas, Censo GIFE 2022-2023. São Paulo: GIFE, 2023. Disponível em: https://sinapse.gife.org.br/download/censo-gife-2022-2023 



Em memória de Tereza de Benguela, Dandara, Mahin, María Elena Moyano, Sanité Bélair, Argelia Laya, María Remedios del Valle, Maria Carolina de Jesus, Lélia Gonzáles, Marielle Franco, e de todas as mulheres negras, latino-americanas e caribenhas que lutaram e lutam,

diariamente. Escrevemos este texto como um lembrete: as mulheres negras mudaram e continuam a mudar o mundo, então deixem-nas fazê-lo!   


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